O Brasil possui a terceira maior população prisional do mundo, composta, em sua maioria, por presos provisórios, ou contra os quais ainda não há condenação transitada em julgado. Para explicar as razões desse encarceramento proponho a aproximação ao debate sobre o pensamento sociológico hegemonizado no Brasil e as implicações que as acepções dominantes sugerem, valendo-me, para tanto, das contribuições de Jessé Souza.
Com o passar das décadas, diversos pensadores alternaram-se no intento de explicar a formação da sociedade brasileira. Coube a Gilberto Freyre, responsável pela “criação de um sentimento de identidade nacional brasileiro que permitisse algum orgulho nacional como fonte de solidariedade interna” [1], a formatação de um paradigma caracterizado pela ideia de continuidade entre Brasil e Portugal, e a emotividade como traço principal dessa cultura.
Valendo-se desse legado deixado pela colonização lusitana, Sérgio Buarque de Holanda edificou a ideia de homem cordial, pautada na “percepção do brasileiro pensado genericamente, sem distinções de classe” e “prolongada na noção de Estado patrimonial” [1], categoria explorada por Raymundo Faoro para designar aqueles que seriam os donos do poder [1], conjugação da qual decorreu a ideia de brasileiro como vira-lata da história.
Nesse arranjo, o capital de que dispunha o homem cordial para cunhar seus interesses por entre as entranhas do Estado patrimonial determinava a existência e extensão das relações sociais travadas, prática que Roberto da Matta, discípulo de Sérgio Buarque de Holanda, chamaria de “jeitinho brasileiro”. Não tardou para que o jeitinho brasileiro passasse a simbolizar a capacidade de o brasileiro enfrentar os problemas e as dificuldades que as circunstâncias da vida lhe impunham, sempre com certo grau de criatividade e dotado de uma destreza que lhe é particular, o que não chegava a lhe atribuir reconhecimento porque não dispunha e posses nem títulos.
As características que orbitavam em torno desse brasileiro tornaram-se pretexto suficiente a lhe incutir, de forma indelével na história da formação do país, atributos que justificariam a marginalidade e a inaptidão à vida social a que foram relegados. Além do propalado aspecto primitivo ostentado, em muito caracterizado pela cor da pele e, ainda, por decorrência da manifesta desorganização social a que negros e mulatos eram submetidos, suficiente à formação de um preconceito em torno da personalidade que possuíam, a família desorganizada, segundo proposto por Florestan Fernandes, “tornou-se a base dos desequilíbrios e da desorganização da vida em todas as suas dimensões” [1], inclusive no campo do trabalho. Logo, condicionados que eram à inaptidão ao trabalho útil, esteio moral sobre o qual a sociedade brasileira foi constituída e a partir do qual foram definidos os critérios diferenciadores de hierarquia, inclusão e dignidade [2] na maioria dos países que se desenvolveram no marco do capitalismo, o negro e o mulato acabaram condenados ao desprezo geral, restando-lhes, conforme a realidade edificada pelas contribuições de Roberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Roberto da Matta e Raymundo Faoro, a associação histórica à vadiagem, à delinquência e à prostituição, não por acaso, conforme acentuou Fausto, “a estigmatização de camadas sociais destituídas com o rótulo de vadios é um dado que percorre a histórica brasileira desde o período colonial”.
Em oposição ao paradigma culturalista vigente, considerado como uma “falsa superação do racismo” [1], na medida em que a segregação social é justificada por uma ideia de herança ou legado cultural que, com vistas a omitir ou tornar opaca a existência de um processo secular de apropriação diferencial de capitais, perpetua a submissão de camadas sociais à marginalização e à pobreza, Jessé Souza propõe uma nova abordagem teórica à construção de um novo paradigma de explicação sobre a sociedade brasileira, pautado em pensar o Brasil sem o usos de categorias racistas, enfatizando a noção de aprendizado do povo.
A centralidade do pensamento de Souza reside, especificamente, na denúncia daquilo que designa ser a naturalização da desigualdade social de países periféricos de modernização recente, como o Brasil, resultante da modernização ocidental ocorrida no século XIX, em contraponto à tese sobre a existência de qualquer legado ou herança advinda do processo de colonização portuguesa. Jessé Souza propõe-se a lançar luz sobre as zonas obscuras das interpretações clássicas totalizantes da história brasileira, revisitando e revisando as abordagens hegemônicas sobre a trajetória do país e sua singularidade, enquanto boa parte da produção sociológica optou pelo caminho da especialização. Para Souza (2003), as antinomias presentes na história brasileira estão diretamente ligadas ao processo de modernização capitalista, de modo que a singularidade do processo histórico brasileiro é materializada na transferência das práticas modernas trazidas da Europa e aplicadas ao Brasil sem nenhum tipo de mediação.
O itinerário traçado para desenvolver sua argumentação desloca as leituras sobre nossas mazelas sociais e as contradições que ainda acompanham o Brasil, de modo a que não possam ser explicadas pela insistência a uma certa centralidade de categorias como o personalismo, coronelismo, familismo e o patrimonialismo. Tais interpretações clássicas centram sua atenção numa espécie de “cultura essencialista” e fomentam uma lógica discursiva pautada numa herança pré-moderna e personalista que seria a razão de nossos infortúnios. A interpretação alternativa de Souza não nega a importância da cultura e de seu peso simbólico, contudo, informa que o acesso a tal condição, ao depender das realidades sociais construídas, implica diferentes traços simbólicos.
Assim, diferente de uma lógica cultural distinta da modernidade, ou de sua incompletude, fomentada na falta de distinção entre o público e privado, a naturalização da nossa desigualdade é resultado do que há de mais moderno: a eficácia da impessoalidade [3]. Em outras palavras, as contradições sociais brasileiras não são resultantes da falta de modernidade. Pelo contrário, é exatamente no caráter moderno dos nossos conflitos que emergem nossas desigualdades e é justamente nesse ponto que residem as chaves interpretativas da tessitura social brasileira. A essa singularidade a que Souza chama de “modernidade periférica”, reside uma crítica à emergência do processo moderno brasileiro que, de acordo com ele, não se trata de uma mera dualidade entre o pré-moderno e o moderno.
Nesse sentido, a crítica não se restringe a sua anunciação, representando, antes, uma proposta alternativa fomentada na realização da modernidade ocidental na sua totalidade.
Ao aprofundar a análise do padrão de modernidade, denominado de nova periferia, as práticas modernas são vistas como anteriores às próprias ideias modernas. Seus traços são descritos a partir da desconstrução-reconstrução das interpretações clássicas da formação social brasileira. Souza (2003), inclusive, anunciando parte importante de seu esforço teórico na utilização da obra de Gilberto Freyre contra o próprio Freyre, tenta reconstruir a singularidade da formação social brasileira valendo-se do autor de Casa Grande e Senzala sem compactuar com suas generalizações profundamente ideológicas. Referida escolha metodológica se deve, sobretudo, à importância da interpretação de Gilberto Freyre sobre o século XIX, período fundamental para a modernização periférica brasileira e, ainda, em razão da centralidade que a instituição da escravidão possui em sua obra.
Nesse sentido, Souza (2003) resgata outra dimensão da obra de Freyre, a que considera a “versão reprimida” da singularidade da escravidão brasileira, a saber, sua importância estrutural enquanto conflito inerente às relações sociais da escravidão, não se tratando, pois, de um processo forjado no consenso entre diferentes grupos sociais, mas, pelo contrário, sob constante tensionamento. Inexistia, segundo ele, a mediação social por instituições como a religião, como, por exemplo, sucedeu na constituição da sociedade norte americana, em que o processo fora mediado pelo protestantismo de base liberal. Ao contrário, a sociedade brasileira emergiu de relações que tiveram como base elementos familísticos [4], de forte matiz personalista e autoritário, sem a precedência de instituições mediadoras, ou seja, no Brasil forjou-se uma sociedade constituída estruturalmente por tensões e produtora de uma patologia social específica caracterizada pela indiferença, seja quanto à existência do outro seja com sua dor [1]. Esse caminho conceitual, ao buscar elucidar como o núcleo da escravidão teve papel fundamental na consolidação das relações sociais entre escravos e livres, também aclarou como o capitalismo ganhou aspectos de uma modernização conservadora e como se deu a presença constante de uma hegemonia ideológica-política do organismo estatal.
A partir dessa contextualização, de acordo com Jesse Souza, permitiu-se a construção de uma “ralé” estrutural e naturalizada pela reprodução característica de desigualdade produzidas na periferia, geradoras daquilo que designa ser a “subcidadania brasileira”. Essa subcidadania, assim, não foi fruto de um processo anterior, que, à luz da modernização ou de um choque de modernidade, poderia ser resolvido, decorrendo, sim, de um processo singular produtor de suas próprias mazelas.
Esse padrão específico que cunhou a formação da sociedade brasileira, ou seja, a subcidadania produzida no contexto da periferia do capitalismo, esteve presente ao longo da estruturação da vida republicana nacional. A própria marginalização de grupos sociais moldada sobre a base do preconceito de cor forjou a constituição de um “habitus precário” estruturado sobre concepções políticas e morais. Fruto da síntese realizada por Souza a partir de categorias essenciais das obras de Bourdieu e Taylor, o conceito de habitus precário descreve um tipo de comportamento que afeta indivíduos e grupos, submetendo-os a padrões exigidos pelo universo mercantil, e que, na prática, inviabiliza o reconhecimento social sobre o real significado de ser produtivo numa sociedade capitalista.
Da síntese proposta por Souza, pois, a afirmação no sentido de que “todas as sociedades modernas, sejam centrais ou periféricas, operam segundo os mesmos princípios morais que classificam e desclassificam os indivíduos e as classes sociais é efetivamente novo e revolucionário. Perceber a exclusão social dos países periféricos como o Brasil como resultado de uma dinâmica de exclusão que não tem nada a ver com supostas heranças culturais demoníacas e misteriosas também é novo e revolucionário.” [1]
Referida lógica, ao legitimar o domínio de uma pequena camada da sociedade sobre imensa gama de desvalidos situada abaixo da linha da dignidade, ou, segundo designou Jessé Souza, os “subcidadãos”, impede que o conjunto da população perceba a dimensão simbólica da exclusão social e a “permanência no tempo da precariedade material, existencial e política” [3] a que os condenados à subcidadania são submetidos, conformando, no espectro normativo, uma ordem pública que comunicará os valores e princípios sedimentados como hegemônicos. [5]
Dentre as estratégias à manutenção do domínio social, o uso do poder punitivo estatal figura como a mais recorrente e eficaz. Para tanto, o aprisionamento indiscriminado de pobres, negros e periféricos, a pretexto da contenção das camadas submetidas ao habitus precário é visto como prática socialmente aceita na maioria das grandes cidades brasileiras, conforme denunciam os indicadores oficiais: ou quem são, de fato, as pessoas presas no Brasil.
Nesse contexto, o aprisionamento provisório assume função instrumental essencial à concretização dessa estratégia, na medida em que, muito além de inocular os infratores da ordem pública estabelecida, também conduz a sociedade a um processo de criminalização simbólica que é dirigido a todos os demais indivíduos que compartilhem dos mesmos marcadores sociais ostentados pelos chamados delinquentes, indesejados ou inimigos (ou os declarados facionados).
[1] Souza, Jessé. Subcidadania brasileira: para entender o país além do jeitinho brasileiro / Jessé Souza. – Rio de Janeiro : LeYa, 2018.
[2] Segundo Jessé Souza, “Foi Martinho Lutero quem tornou o vínculo do trabalho sagrado. Precisamos lembrar que, na Antiguidade, quem trabalhava era escravo e no medievo, o servo. O trabalho era ultrajante e o ócio, dignificador. Com o protestantismo, essa hierarquia moral é posta de ponta-cabeça. “Agradar” a Deus, agora, só era possível por meio do trabalho, percebido como um chamamento divino. Isso foi acrescido do toque democratizante do protestantismo, já que o tipo do trabalho não era importante, mas o “modo” como ele era exercido. […] O trabalho útil, que contribui de algum modo ao bem comum, passa a ser a fonte maior tanto de autoestima individual como de reconhecimento social. É isso que explica sua substância de fonte moral. Quem não exerce trabalho útil está condenado, a partir de então, não só à baixa autoestima, como também ao desprezo geral. Simples assim. Não temos, portanto, enquanto indivíduos, nenhum controle sobre os mecanismos de atribuição de respeito, consideração e prestígio social. Assim como não temos sobre os mecanismos que produzem o desprezo e a indignidade. (p. 41-43).
[3] Souza, Jessé A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2003, p.17
[4] Marcados pelas relações de poder em cujo núcleo estaria o patriarca e sua família e em torno do qual orbitavam outros grupos. Sobre o assunto ver: NUNES LEAL, Victor. Coronelismo, enxada e voto: O município e o regime representativo no Brasil. 7, ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[5] Sobre o conceito de ordem pública, fundamental a contribuição de Patrick Gomes (2013, p. 22) que, após tecer considerações sobre a aplicação material e constitucional que lhe atribui Norberto Bobbio, refere que “em ambos os modelos de Estados, sejam de ordem pública material ou constitucional, têm se estabelecido “uma noção elástica de Ordem pública que trouxe consigo a ampliação dos limites e permite uma maior redução dos direitos de liberdade. Contudo, se bem que por motivos diferentes, observou-se sempre uma elasticidade semelhante nos ordenamentos primeiramente lembrados”, ou seja, é um conceito variável que serve tanto a regimes de cariz autoritário quanto aos democráticos e que, em termos práticos, pode ampliar ou restringir garantias, a depender do interesse ideológico em jogo”.